O Escolhido dos Céus Perdidos

Azazel

C.M. CESAR

5/8/20243 min read

   O fogo crepitava alto nas cavernas sob o Monte Hermon. A bigorna celestial, caída dos céus como um raio há gerações, pulsava em vermelho vivo, banhada pelo sangue de um animal que Azazel acabara de sacrificar. Seu martelo, forjado no brilho das estrelas antigas, batia com o peso da eternidade sobre o ferro do firmamento.

    Cada batida era um lamento. Cada faísca, um fragmento da glória perdida.

   Azazel não era como os outros Vigilantes. Enquanto muitos buscavam o prazer na carne humana ou na vaidade da adoração, ele carregava um fardo mais antigo: o conhecimento. Fora ele quem ensinara aos filhos de Adão os segredos do ferro e do bronze, a alquimia dos céus, os signos que governavam as estações, e o mistério dos encantamentos. Mas agora... via o preço disso queimando nos olhos dos Nefilins.

   Naamá estava grávida. Ele sabia. Todos sabiam. Mas o que crescia nela já não era humano, nem anjo. Era algo novo. Algo que não deveria ser. E aquilo o assustava.

    Samael entrou na caverna, envolto por sua túnica negra, as asas recolhidas como uma lembrança distante de tempos melhores.

— A cidade de Eridu canta nossos nomes esta noite. — disse ele. — Três nascimentos ocorreram. Três filhos nossos.

    Azazel manteve os olhos no metal incandescente.

— Filhos... ou sombras?

— Estás fraco, Azazel? — Samael se aproximou. — Esqueceste o juramento no cúmulo do Hermon?

— Não esqueci. Mas jurei pela liberdade, não pelo caos. Olhe para eles! Os Nefilins já não nos obedecem. Comem a carne dos homens. Riem das leis celestiais.   Atacam entre si.

     Samael riu baixo.

— Isso é vida. Eles são deuses em forma de fósforo e carne.

     Azazel finalmente olhou para ele, os olhos brilhando com brasas internas.

— Eles são o fim do que fomos. O fim do que poderíamos ter sido.

     Naquela noite, Azazel caminhou até uma fenda nas rochas onde o vento cortava o rosto como lâmina. De lá, podia ver o mundo abaixo. As planícies, os rios de barro que serpenteavam como veias abertas, e ao longe, a fumaça das piras humanas.

    Eridu era uma miragem decadente. Um ninho de seitas, onde os homens dançavam nus ao redor de estátuas vivas dos Nefilins. Mulheres ofereciam seus filhos para sacrifícios, acreditando que teriam em troca colheitas ou chuvas.

     Eu não ensinei isso, pensou Azazel. Não era para isso.

     Foi então que viu uma figura se aproximar. Um manto escuro, o rosto coberto por um capuz. Nenhuma aura, nenhum cheiro. Apenas presença.

— Quem...?

     A figura falou sem mover os lábios.

— Tu serás lembrado, Azazel, não pelos segredos que entregaste, mas pelas mortes que permitiste.

— Quem és tu?

— Aquele que ainda escreve. O Escriba do Trono. Enoque virá. E com ele, a conta será cobrada.

     Azazel caiu de joelhos. Pela primeira vez em éons, sentiu medo real.

     Voltando ao seu santuário, mergulhou em sua forja. Seu martelo voltou a cantar, mas desta vez, forjava não armas, mas uma caixa. Um selo.

— Se há um fim para o que criamos, ele começa aqui.

   Dentro da caixa, fundiu fragmentos do trono celeste que ele havia escondido em sua queda. Inseriu sangue de Nefilim, uma escama de Leviatã, e uma lágrima sua.

     Chamou-a de Arca de Contenção.

    Ao amanhecer, os Nefilins se reuniram ao redor de Irmak, que já tinha crescido três vezes mais que um homem comum, e falava com voz de trovão.

— Os anjos não são mais nossos pais, mas servos. — disse ele. — Eu sou o primeiro e o último. A terra é minha herança.

    Azazel ouviu de longe. Seu coração ardeu de angústia.

— Eles não nasceram para herdar... nasceram para destruir.

    E no silêncio da noite seguinte, Azazel rezou.

    Não para o Altíssimo. Não para os outros Vigilantes.

    Rezou para a esperança de que um dia, um homem puro, sem mistura de sangue caídos, erguesse-se contra eles.

    Rezou por Enoque.

  Mas os dias ficaram mais escuros. Nuvens púrpuras cobriam os céus, e as cidades humanas construíam torres em honra aos seus deuses híbridos. Sacerdotes de Dudael, um dos Nefilins mais violentos, exigiam sacrifícios de guerreiros vivos em rituais de sangue que duravam sete dias.

    Azazel, escondido entre rochas e sombras, via o mundo escapar de suas mãos como areia seca.

   E então, um novo sinal veio do céu: estrelas cadentes em número de sete. Uma para cada um dos Vigilantes que juraram no cume do Hermon. Um aviso do Trono.

— Eles vêm nos buscar. — sussurrou Azazel. — Os Caçadores Celestes. Os Irmãos do Relâmpago.

     O tempo da redenção, ou da destruição, estava cada vez mais próximo.

     E ele, o forjador do saber, seria julgado não apenas pelo que criara... mas pelo que havia permitido existir.