O Cântico dos Vigilantes - Samael

“E quando os filhos do céu olharam para as filhas dos homens, e viram que eram formosas, disseram uns aos outros: ‘Venhamos e escolhamos mulheres dentre elas, e geremos filhos gigantes.’” — Livro de Enoque

C.M. CESAR

5/8/20242 min read

A neve do Monte Hermon nunca fora tão escura. Samael pousou os pés sobre a rocha fria como se estivesse pisando no cadáver do céu. As nuvens acima ainda vibravam com o eco do rasgo — o momento em que o Véu foi dilacerado. Ele o sentiu em sua alma, como se os ossos invisíveis de sua essência gritassem. A queda já havia começado.

Atrás dele, as silhuetas de cento e noventa e nove outros Vigilantes tremiam sob os mantos de luz fragmentada. Tinham descido em silêncio, mas não havia mais silêncio entre eles. O sagrado havia sido trocado pelo inevitável. Pelo desejo.

O ar em Hermon estava espesso de algo que nem mesmo os céus nomeavam: corrupção.

— Estamos aqui, irmãos. — falou Shemyaza, o primeiro, o príncipe da rebelião. — Não há mais retorno. O juramento está selado.

Todos os outros disseram:
— Assim seja.

Mas Samael permaneceu em silêncio.

O pacto era claro: tomariam mulheres humanas, fariam delas esposas, ensinavam os segredos celestiais à humanidade — e em troca, seus nomes seriam imortalizados na Terra. Em troca, eles teriam filhos. Poderosos. Gigantes.

Nefilins.

Samael olhou para baixo, para os vales mortais. Fogos já se acendiam nas vilas humanas. Havia música. Dança. Os homens nada sabiam do que caía sobre eles.

Ele se lembrava do canto do Trono Alto, dos salmos cantados por legiões em pureza. Mas agora tudo parecia distante. Impossível. Um outro universo. Um sonho que se desfez em sangue.

— Por que hesita, Samael? — perguntou Kokabiel, o mestre das estrelas. Seus olhos brilhavam como dois cometas decadentes. — Não é esse o caminho que escolhemos?

— Vocês escolheram. — murmurou Samael. — Eu segui. Mas meu espírito não canta com o de vocês.

— Então canta com quem? Com o Altíssimo que nos abandonou? — retrucou Azazel, aproximando-se com seu corpo de ouro maculado. — Somos os portadores da luz, Samael. Os mestres do conhecimento. Os verdadeiros deuses desta terra.

Samael se virou, encarando o abismo do céu.

— O conhecimento não nos salvou. Ele apenas nos armou.

Azazel riu.
— Então arme-se bem. O mundo será um campo de guerra, e nossos filhos não terão piedade.

Ao longe, Shemyaza erguia as mãos, iniciando o ritual do juramento. Com uma adaga de cristal de céu partido, cortou a palma da mão, e o sangue brilhante caiu sobre a rocha.

Os outros o imitaram. Todos menos Samael.

Mas foi tarde demais.

A montanha tremeu. A terra abriu um fôlego. E o Céu virou o rosto.

O pacto estava selado.

Naquela mesma noite, Samael viu a mulher. Ela se chamava Naama. Era jovem, de olhos cinzentos como o firmamento em luto, e caminhava pela floresta em busca de água. Quando olhou para ele — mesmo em sua forma velada — ela não fugiu. Ela apenas sussurrou:

— Você caiu?

E Samael não soube o que responder.

Ao amanhecer, os primeiros raios de luz cortaram Hermon como lanças. Mas não havia bênção neles. A glória havia partido.

No sopé da montanha, as vilas humanas começavam a desaparecer sob sombras que andavam. Filhos de céu e carne seriam gestados. E o mundo seria profanado.

Samael caiu de joelhos entre as pedras. Mas não para adorar. Apenas para lembrar.

“Que música cantará o anjo que não pertence mais ao céu nem à terra?”

Ele esperaria a resposta no cântico da Queda.