A Semente do Abismo

Do diário de Naamá, filha de Lameque Eridu, 37º ciclo após o exílio do Éden Parte I – Sussurros no Vento

C.M. CESAR

5/8/20246 min read

    O vento soprava do leste naquela manhã, trazendo consigo o cheiro amargo das colinas queimadas e o lamento distante dos bois. Eridu acordava como sempre, com o som dos martelos nas bigornas, o murmúrio das sacerdotisas e o clamor dos andarilhos que buscavam refúgio sob seus portões de lama batida. Mas para mim, o dia começava em silêncio.

      O templo das águas, onde eu servia, erguia-se sobre o último degrau das terras férteis. Seu altar de obsidiana negra, refletindo o sol como um espelho sombrio, parecia zelar por toda a cidade. Era ali que as mulheres da casa de Enkhar se reuniam antes do amanhecer. Mas eu não pertencia verdadeiramente àquele lugar. Não mais.

    Meu nome é Naamá, filha de Lameque, do clã dos artesãos da planície. Mas ninguém mais me chama assim. Entre as bocas das velhas e os olhos curiosos dos homens, sou “a escolhida da estrela”, “a noiva das alturas”... ou “a amaldiçoada”.

     Tudo começou com o sonho.

    Naquela noite, meu corpo repousava no terraço de minha casa, como era costume entre os jovens. O calor do verão tornava os aposentos insuportáveis, e o céu aberto nos dava uma promessa de brisa. Foi então que o vi.

    Primeiro, apenas um som — uma canção que não era feita de notas, mas de luz. Como se a própria lua cantasse para mim com voz de homem.

    Depois, uma presença. Alada, mas não ave. Brilhante, mas não fogo. Ele desceu como uma sombra que não causava medo, mas fascínio. Tinha olhos como brasas, e de suas costas brotavam asas que cintilavam como cristal sob relâmpagos. Ele se chamava Kasdeja.

— "Naamá", ele disse, "filha do pó e da promessa. O mundo jaz adormecido, mas em ti há o fôlego que pode despertar o que dorme nos céus."

    Acordei ofegante, o corpo molhado de suor e lágrimas. A pele ardia como se um selo tivesse sido impresso sobre minha carne. Tentei esquecer, mas nos dias seguintes, o mundo mudou.

    As pedras do chão pareciam pulsar quando eu as tocava. As aves paravam para me observar. E as mulheres mais velhas da vila, ao cruzarem comigo, desviavam o olhar como se vissem em mim algo profano.

    No templo, a alta sacerdotisa Mehelen começou a me evitar. Disseram que eu trazia presságios. Que o espírito do antigo mundo — aquele que pereceu no Éden — ainda ardia em meu ventre. Mas eu sabia que ele voltaria.

Parte II – A Vinda dos Filhos do Céu

    Foi na terceira lua cheia que os céus se romperam como um véu rasgado por dentro. Nuvens em forma de lanças cruzaram os céus e do topo do Monte Hermon, onde os pastores diziam ouvir trombetas de fogo, desceram os Vigilantes.

     Homens? Deuses? Espíritos? Não sei. Mas estavam entre nós. E cada um deles escolheu uma terra, um povo, e... uma mulher.

     Kasdeja veio a mim no templo, sem medo, sem se ocultar. Caminhou entre os pilares como se fossem feitos de palha, ignorando os guardas, que caíram como mortos só com o som de seus passos.

— "Agora é o tempo, Naamá. Os Filhos do Céu desceram. E contigo, inicia-se a linhagem que mudará o destino da terra."

    Tentei fugir. Corri pelos corredores como uma cervo diante do leão. Mas o mundo inteiro parecia ter se inclinado para me levar até ele. Quando seus olhos encontraram os meus, tudo cessou. Tempo, dor, vontade.

     Houve trevas e calor. E no meio disso, prazer... e um estranho sentimento de morte misturado com êxtase. Como se algo em mim fosse aberto por dentro, e outro ser entrasse — não em meu corpo, mas em minha alma.

      Despertei três dias depois, nua sobre as águas do lago Amkar, cercada por corvos. E eu estava grávida.

Parte III – A Maldição das Raízes

    As estações mudaram. Meu ventre cresceu com uma velocidade anormal. As parteiras da cidade recusaram-se a me atender. Diziam que eu carregava “o Fruto Proibido”. Uma das mulheres mais antigas me lançou cinzas e excremento. Os homens me desejavam com fúria, mas também temiam.

     Lameque, meu pai, tentou me esconder. Mas era tarde.

     Na escuridão da floresta próxima, entre os salgueiros que gotejavam sangue — sim, sangue — meu filho nasceu. Um som como o rugido de trovões sacudiu o solo. Os animais fugiram. E o céu ficou negro, embora fosse meio-dia.

     Ele nasceu com olhos abertos. Não chorou. Apenas olhou para mim... e sorriu.

     Eu o chamei de Irmak, mas os Vigilantes o chamavam de algo diferente: "Reha-El", o Despertado".

     Ele era... grande. Cresceu semanas em horas. Falou com dois meses. Andou com três. E logo, construiu com pedras coisas que os homens levariam décadas para entender.

     Mas sua presença... corrompia tudo.

    As plantações em volta da cabana secaram. As crianças adoeciam ao seu toque. Os animais tornavam-se selvagens, ou então ajoelhavam-se como escravos diante dele.

     Kasdeja voltava para vê-lo, mas não como pai — como servo. Era como se meu filho comandasse até os próprios deuses.

     E eu, Naamá... me via murchar, como flor diante do fogo.

Parte IV – As Vozes Sob a Terra

    Com o passar dos dias, Irmak tornava-se mais... estranho. Ele não brincava com outras crianças. Não chorava. Não ria. Mas falava com o vento. Conversava com a terra. Seus olhos — de um cinza profundo — pareciam ver além da pele, além da alma.

Uma tarde, ao me ver cuspindo sangue, ele apenas disse:

— "Teu corpo é barro, mãe. E o barro não suporta o peso do fogo eterno."

     Senti que algo havia se perdido em mim para sempre.

   Quando ele completou três ciclos lunares, embora parecesse ter dez anos, os primeiros sinais do Abismo se manifestaram.  Homens da vila desapareceram. Animais eram encontrados mutilados, vazios por dentro, como sacos de carne abandonados.

     E então veio o som.

    Era uma espécie de vibração profunda, que surgia da terra à noite, como se algo colossAL rastejasse sob nossos pés. Todos em Eridu começaram a ter pesadelos. Alguns se suicidaram. Outros enlouqueceram e correram nus pelos campos, gritando palavras em línguas antigas que nem os mais velhos conheciam.

    Foi então que os Vigilantes se reuniram. Pela primeira vez, todos os vinte e dois desceram a Eridu, vindo das quatro direções. Os céus escureceram com suas presenças. As pedras tremiam ao seu toque. E cada um deles — portando espadas de luz, rostos em chamas e coroas de estrelas mortas — ajoelhou-se diante de Irmak.

     Mas ele não se comoveu.

— “A semente está plantada”, disse Irmak. “O sangue dos céus já corre pela terra. A próxima geração será de conquistadores.”

     Um deles, um anjo de olhos negros chamado Azazel, perguntou:

— “E os Filhos de Adão? Não se rebelarão?”

     Irmak sorriu com os dentes afiados de uma criança que nunca aprendeu piedade:

— “Eles não se rebelam contra o que veneram.”

Parte V – A Primeira Aliança de Sangue

     Os Vigilantes fizeram então um pacto. Um juramento que chamaram de "Berith ha-Dam" — a Aliança de Sangue.

   Reunidos no cume do Monte Hermon, cortaram suas mãos com lâminas de oricalco e misturaram seu sangue com a terra, selando o destino da humanidade.

     Eu fui levada até lá contra minha vontade. Naamá, a mãe da aberração, a mulher que carregava o dom e a maldição.

   Naquela noite, fui posta sobre o altar. Meu corpo marcado com símbolos que jamais haviam sido pronunciados por língua humana. Em meio aos trovões e ao riso de demônios nas sombras, Kasdeja anunciou:

— “A era dos homens terminou. Os Nefilins nascerão. E a terra será sua fornalha.”

     Irmak estendeu a mão e colocou um fragmento de pedra escura sobre meu ventre. A dor foi insuportável. Vi visões de guerras, de reis ajoelhados, de cidades afundando em mar de sangue. E no fim… o trono vazio do Altíssimo.

    Acordei dias depois, nos salões vazios de Eridu. Mas a cidade não era mais a mesma. O povo se dividia. Alguns adoravam os Vigilantes como deuses. Outros os temiam como pragas. Grupos começaram a se formar — rebeldes, cultistas, mercadores do novo saber.

     E os filhos das mulheres que dormiram com os anjos... estavam nascendo.

     Todos eles gigantes. Poderosos. Incontroláveis.

     E com fome.

Parte VI – A Voz do Sangue

     O que veio depois não pode ser descrito com palavras humanas.

    Eu vi Irmak comer um boi inteiro ainda vivo. Vi mulheres tendo visões após tocarem seus cabelos. Vi sacerdotes serem mortos por uma simples palavra de sua boca.

     Mas o que me quebrou… foi a noite em que Lameque, meu pai, tentou matá-lo.

    Levou uma lança feita de pedra negra. Escondeu-se entre os salgueiros onde Irmak dormia. Mas quando tentou perfurá-lo, a lança se quebrou como vidro. Irmak acordou... e com um gesto, simples gesto, torceu o corpo de meu pai como um galho seco.

     Ele me olhou e disse:

— “Ele tentou me negar. Agora ele conhece o vazio.”

     Enterrei Lameque com as próprias mãos.

     E soube, ali, que eu não tinha mais volta. Que minha alma fora entregue com meu ventre.

     Sou mãe dos monstros.

     Sou a primeira rainha do sangue.

     Sou Naamá, a maldita. E a canção da queda... começou comigo.